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23 maio 2021

"Crip Camp" e a existência política da pessoa com deficiência

✎ Por Mayara Gonçalves

Sabe aquela recomendação de filme que você recebe de um amigo - e, em uma noite de sábado, decide seguir despretensiosamente -, só que em vez de ser um simples longa metragem se torna um marco em sua vida? Pois foi assim que me senti depois de assistir a Crip Camp: Revolução Pela Inclusão, disponível na Netflix. Prova de sua importância é que foi indicado ao Oscar 2021 e tem como produtores executivos o casal Barack e Michelle Obama! Então, se você não gosta de spoilers, segue a minha dica: vai lá assistir e depois volta para o Fala, Prô!

Cena do documentário Crip Camp disponível na Netflix

O documentário conta a história de um grupo de amigos que se formou em um acampamento de verão chamado Jened. Ele existiu de 1951 a 1977 nos Estados Unidos e tinha a proposta de reunir pessoas com as mais variadas deficiências em uma fazenda - simplesmente para que pudessem curtir a vida longe dos julgamentos da sociedade. A grandeza desse documentário já começa neste ponto: o Jened era um espaço onde, apesar de suas peculiaridades, todos eram iguais, tendo a oportunidade de viver experiências genuínas como qualquer outra pessoa. 

O recorte abordado pela produção ganha ainda mais corpo quando notamos que seus registros se passam na era hippie e tem como pano de fundo a liberdade de expressão que estava em voga na época. Afinal, por que não associar a filosofia hippie às pessoas com deficiência? Para quem ainda nutre aquela curiosidade com um fundo capacitista em relação às nós, no pior estilo do "quem são? o que comem? e onde vivem?", esse documentário é uma verdadeira revelação: como qualquer outro hippie, os integrantes daquele acampamento levavam a máxima "sexo, drogas e rock n' roll" a sério. Lá foram criados laços afetivos muito fortes, cheios de empoderamento e da beleza de pertencer a algo, que perdurariam pela vida toda. Lá foram expostas muitas verdades que ninguém sequer sabia que existiam. Só por isso, o Jened já justificou o título de revolucionário. Mas a verdade é que não para por aí!

O que pode sair de algo tão único quanto o "Woodstock dos PCDs"? É claro: um movimento político pró-inclusão, que engrossa ainda mais o caldo deliciosamente educativo de Crip Camp! Foi a movimentação desse grupo de pessoas com deficiência, que sentiu a necessidade de lutar pelo direito de viver em uma sociedade mais acessível, inclusiva e igualitária, que fez com que a sessão 504 das leis estadunidenses fosse assinada. Segundo ela:

Nenhum indivíduo de outra forma qualificado com deficiência deve, exclusivamente por causa de sua deficiência, ser excluído da participação, ter os benefícios negados ou ser sujeito a discriminação em qualquer programa ou atividade que receba fundos federais

Liderados pela incrível Judy Heumann (que teve poliomielite na infância e até hoje é uma militante das causas PCD, envolvida em várias iniciativas), eles fizeram protestos nas ruas americanas e ocuparam um prédio governamental durante mais de 20 dias para conversarem com as autoridades e terem seus direitos assegurados. Essa é uma das partes do documentário que mais merece destaque na minha opinião, porque as autoridades começaram a ter medo do burburinho causado pela iniciativa (que teve apoio até dos Panteras Negras!), chegando a prender alguns militantes que permaneceram no prédio. E assim, depois de muita resistência, esgotamento físico e emocional, eles conseguiram consolidar seus objetivos em mais um ato de luta, tão grandioso quanto a participação no Jened.

Neste momento, um sentimento antigo reverberou no meu coração: a existência de toda pessoa com deficiência é um ato político e desafiador. Ela importa porque gera questionamentos e incômodos necessários para a construção de uma nova sociedade, que acolhe a diversidade, ensina novos valores e tem  prioridades focadas no bem-estar social e na inclusão. E é por isso que devemos nos posicionar não só diante das questões relacionadas à acessibilidade, mas de tudo que impacta diretamente em grandes mudanças sociais.

É verdade que a luta de Judy com as autoridades americanas havia começado individualmente anos antes, quando ela processou o conselho educacional da cidade de Nova York após ter sua licença para dar aulas negada, sob o argumento de que em caso de incêndio escolar, ela não seria capaz de salvar a si mesma e nem aos alunos. Assim, é devastador saber que uma educadora não pôde exercer sua profissão naquele momento por um motivo capacitista. Além disso, é muito cansativo saber que, desde aquele tempo, grupos de pessoas "fora do padrão" têm seus limites testados enquanto lutam por algo que é básico (e ainda precisam ser "eternamente gratos" caso seu direito seja assegurado). Porém, é como eu sempre digo: ser uma pessoa com deficiência é também ser pioneira em chegar a certos lugares e enfrentar muitas situações que você não quer, em prol de algum avanço. Pessoalmente, eu admiro e compartilho muito da força de Judy e seus amigos para lutar por um mundo melhor. Afinal, através dessas e de outras iniciativas encabeçadas por pessoas como nós, é que PCDs puderam e vão ocupar cada vez mais os espaços. 

Embora eu não saiba ao certo se tamanha mobilização é possível em um país tão dividido como o Brasil (divisão essa que aparece até no núcleo PCD) e fique muito desapontada com isso, o primeiro pensamento que tive depois de assistir ao documentário foi: "eduquemos nossas crianças, para que elas sejam parte da mudança coletiva e não da cisão". Assistiu ao documentário e quer continuar o papo? Comente aí embaixo e vamos conversar! 

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