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21 novembro 2020

A urgência de uma educação antirracista

✎ Por Fernanda Fusco
O comprometimento ético e político com a luta antirracista não deve se limitar apenas ao povo preto: enquanto pessoa cisgênero, heterossexual e branca, devo reconhecer os privilégios que me acompanham (e que contribuem para a exclusão de outros grupos) e juntar forças para combater essa violência que tem nome, o racismo. Ainda mais porque escolhi ser educadora, que defende uma educação emancipatória, libertadora e pautada na formação de cidadãos críticos e autônomos. Mas, antes de iniciar a reflexão, gostaria de deixar meus agradecimentos à minha amiga e mana de luta Verônica Aline Matos, que é advogada, mãe, feminista, militante do movimento negro e que me ensina diariamente, especialmente a não me calar diante das opressões; e às amigas, parceiras e mães Sarah Linhares e Thaiane Oliveira, que autorizaram o uso das imagens de seus pequenos para deixar esse post ainda mais lindo e rico em significados!

Imagem meramente ilustrativa: Enzo na Festa Africana. A utilização da foto foi autorizada pela mamãe Thaiane Oliveira. Uso exclusivo do Fala, Prô!: não copie ou distribua!

Trago a temática justamente um dia após ao Dia da Consciência Negra para refletirmos a respeito do assunto, mas destaco que o debate não deve se limitar apenas ao mês de Novembro: a educação antirracista e as questões étnico-raciais precisam permear o nosso planejamento anual, incluindo nossas ações cotidianas (o chamado currículo oculto). Existem leis que procuram garantir o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana (como as 10.639/200311.645/2008, que incluem também os povos indígenas) nos currículos educacionais, mas ainda há muito o que conquistar.

Cinquenta e quatro por cento (54%) da população brasileira se autodeclara negra: são a maioria, mas por que são poucos os que ocupam lugares de poder? Por que, ao longo dos anos escolares, as turmas vão "clareando" até chegar ao Ensino Médio (vejam dados sobre reprovação, que justificam também a evasão escolar) e até universidades? Por que naturalizamos a presença de pretas e pretos nos espaços de opressão (dois em cada três detentos no sistema carcerário são negros), assim como atos brutais de violência (taí o recente caso de João Alberto Silveira Freitas morto no Carrefour)? Por que ainda nos silenciamos diante de atos racistas até no ambiente escolar?


Imagem meramente ilustrativa: Bernardo na Festa Africana. A utilização da foto foi autorizada pela mamãe Sarah Linhares. Uso exclusivo do Fala, Prô!: não copie ou distribua!

É preciso compreender que o racismo faz parte de um sistema de opressão e não é um ato isolado de um indivíduo. Não são apenas as pessoas "malvadas" que são racistas: todos nós reproduzimos racismo, de alguma forma. E não adianta justificar que você tem até amigas(os) pretas(os), que você "não vê cor" ou que acha que sua empregada doméstica preta é "quase da família". O racismo é estrutural em nossa sociedade, mas também precisamos fazer a nossa parte para desconstruí-lo. A filósofa e feminista Djamila Ribeiro complementa:

Reconhecer o caráter estrutural do racismo pode ser paralisante. Afinal, como enfrentar um monstro tão grande? No entanto, não devemos nos intimidar. A prática antirracista é urgente e se dá nas atitudes mais cotidianas. (Pequeno Manual Antirracista, posição 66-69)

O mito da democracia racial, tão comum em nosso país, contribui para a manutenção das desigualdades já que nega a existência do problema: é preciso reconhecer que a sociedade é racista e o racismo atravessa suas instituições, incluindo a escola. Enquanto que o branco recebe beijos, abraços e toques, por exemplo, a escola se distancia das(os) alunas(os) pretas(os), como denuncia a mestra em educação Eliane Cavalleiro em seu livro Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na Educação Infantil. Crianças e adolescentes sofrem maus tratos, agressões e injustiças, enquanto professoras, professores e demais funcionários preferem se manter cegos. Ouço corriqueiramente que escola é um espaço de ser feliz, mas no sentido de que a Educação Infantil precisa ser repleta de cores, unicórnios e algodões-doces, que as crianças são inocentes e que não devemos tocar em assuntos considerados "polêmicos". Mas quais crianças estamos protegendo desses assuntos, visto que o povo preto vivencia o racismo desde muito cedo, tendo sua infância e desenvolvimento comprometidos? Enquanto estão no seio da família, as crianças negras geralmente não sentem essa desigualdade; é na escola que começa a presenciar essas violências.

No que diz respeito ao comportamento do professor em relação a esses conflitos, o dramático depoimento da menina Catarina (negra) é bastante elucidativo. Segundo ela, as crianças a xingam: "... de preta que não toma banho. Só porque eu sou preta eles falam que eu não tomo banho. Ficam me xingando de preta cor de carvão. Ela me xingou de preta fedida. Eu contei para a professora e ela não fez nada." (Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na Educação Infantil, posição 872-875)

Outra ingenuidade (e às vezes também mau-caratismo) é pensar que trabalhar a diversidade é apontar apenas que existe gente de tudo quanto é tipo, que não devemos enxergar raças, que todos devemos nos dar bem... Certa vez ouvi de um coordenador pedagógico (que mais serviu para desinformar do que formar) que trabalhar a diversidade é mostrar o quanto é lindo sermos diferentes: o mesmo defendia ainda que não devemos exaltar tanto a beleza negra, afinal pode gerar a impressão de que é "melhor que as outras". Não é aceitável, especialmente para um profissional da educação que tem um comprometimento ético, político e pedagógico.

A despreocupação com a questão da convivência multiétnica, quer na família, quer na escola, pode colaborar para a formação de indivíduos preconceituosos e discriminadores. A ausência de questionamento pode levar inúmeras crianças e adolescentes a cristalizarem aprendizagens baseadas, muitas vezes, no comportamento acrítico dos adultos a sua volta. (Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na Educação Infantil, posição 295-297)

Quando falamos sobre diversidade, é preciso discutir também com nosso público-alvo sobre as diferentes formas de opressão e nomear as violências para não invisibilizar suas pautas: racismo, machismo, homofobia, transfobia, sexismo, intolerância religiosa... e não só "bullying". Essas palavras precisam deixar de ser tabus e discriminações nunca podem ser silenciadas. O silêncio é carregado de sentidos e a ausência dos debates sobre o racismo nas escolas faz com que crianças e adolescentes acreditem que não existe, impedindo-as de formar uma visão crítica. De acordo com Eliane Cavalleiro, por conta disso os alunos brancos acabam se sentindo no direito de reproduzir comportamentos discriminatórios, afinal não são denunciados. E, com a interiorização da negatividade do seu grupo étnico, crianças pretas acabam aceitando como verdade e reproduzem.

Fala, Prô! indica: Precisamos romper com os silêncios, por Djamila Ribeiro

Daí, quando são contestados e com medo de parecerem "pessoas más", professoras, professores e demais funcionários se negam a assumir seu próprio racismo (disfarçado de cegueira) e utilizam como estratégia elogios à estética negra (pontuando a "beleza exótica"), por exemplo; justificam que tinham algum aluno preto que gostavam muito porque era tão bonzinho e tinha uma "alma branca"; em festas de exaltação à cultura afro-brasileira, apontam que adoram capoeira porque sempre foram "maloqueiras(os)"; reconhecem negros como ótimos esportistas (reforçando a ideia de que têm corpos fortes), dançarinos, cantores... mas se limitam a esses estereótipos! Isso tudo pela busca da autoafirmação e aprovação como pessoa não-racista

Tentando demonstrar apreciação ao grupo negro e recriminar as atitudes e práticas discriminatórias, a entrevistada exalta a suposta superioridade física do negro. O que, além de poder ser entendido como uma “compensação”, nos faz lembrar do modelo escravocrata que utilizava ideias semelhantes para justificar o trabalho braçal ao qual os negros escravizados eram submetidos. (Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na Educação Infantil, 1622-1625)

O que devemos fazer, então, para começar a mudar essa realidade? O primeiro passo é reconhecer que o racismo existe, mas não devemos parar por aí: de acordo com a professora Iara Pires Viana (na live ao final deste post), devemos denunciar a pedagogia das ausências para praticar a pedagogia das emergências e não continuar na manutenção das desigualdades. Há anos de reparação histórica a ser feita e, enquanto educadoras e educadores, podemos fazer a nossa parte também no chão da escola!

Como adotar uma pedagogia antirracista?

Devemos estar atentas(os), afinal o racismo nem sempre é escancarado e pode ser muito sutil: está inclusive nas ausências. Se atua na rede particular ou na universidade, olhe para a sua turma: existe diversidade? Quantas(os) alunas(os) negras(os) estão matriculadas(os)? Se são minoria, já parou para refletir o porquê disso acontecer? E que ações a sua unidade pode adotar para compensar esse quadro?

Fala, Prô! indica: O perigo de uma história única, por Chimamanda Ngozi Adichie

Ao reler o projeto político-pedagógico de sua unidade, consegue identificar a preocupação com uma pedagogia para a diversidade? Veja se há algum destaque para as questões étnico-raciais, a preocupação no combate das diversas discriminações (nomeando cada uma delas) e quais projetos e ações estão pautados nesses princípios. Como foi traçado o perfil e a história da comunidade? Considera as diferentes vozes ou foi escrito seguindo a perspectiva de uma história única, como denuncia a autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie? E quanto ao projeto de formação das educadoras e educadores? Na bibliografia há ao menos autoras e autores pretas e pretos? Existem, ainda, estudos com base nas informações trazidas pela comunidade? É necessário o reconhecimento desses e de outros saberes, incluindo os produzidos pelos movimentos sociais e pelos setores populares (tanto nas formações como nas salas de aula).

A compreensão dos saberes produzidos, articulados e sistematizados pelo Movimento Negro tem a capacidade de subverter a teoria educacional, construir a pedagogia das ausências e das emergências, repensar a escola, descolonizar os currículos. Ela poderá nos levar ao necessário movimento de descolonização do conhecimento. (Nilma Lino Gomes, O movimento negro educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação, p. 115)

Quando está com a sua turma, você costuma ler livros ou apresentar vídeos onde as protagonistas são pretas e pretos e que fogem de estereótipos? Recursos que tratam especificamente das questões étnico-raciais (como da beleza negra, por exemplo) são muito importantes, mas e aqueles que tratam de assuntos cotidianos? Como o povo preto está representado nos livros didáticos adotados pela unidade? Jogos, brincadeiras e brinquedos africanos, assim como a etnomatemática, estão presentes em seu planejamento? Existe a preocupação em enxergar o povo preto enquanto potência, enquanto autores, considerando sua história e a cultura que produz (e não apenas como grupos que "contribuiram" na construção do nosso país)? Ao tratar do processo de escravização, por exemplo, é discutida a luta e resistência negras, ou são silenciados na sua própria libertação (sendo chamados de escravos, e não escravizados, e dando os créditos a uma princesa branca)?

Um ensino que valoriza as várias existências e que referencie positivamente a população negra é benéfico para toda a sociedade, pois conhecer histórias africanas promove outra construção da subjetividade de pessoas negras, além de romper com a visão hierarquizada que pessoas brancas têm da cultura negra, saindo do solipsismo branco, isto é, deixar de apenas ver humanidade entre seus iguais. (Pequeno Manual Antirracista, posição 232-237)

Segundo Djamila Ribeiro, temos também que apoiar as políticas de reparação e afirmativas, assim como "iniciativas que têm como objetivo a visibilidade de pensamentos decoloniais" (Pequeno Manual Antirracista, posição 375-376). Na live compartilhada ao final deste post, Alexsandro Santos ainda afirma que "não é possível defender o antirracismo se continuamos defendendo governos autoritários". Devemos também denunciar atitudes racistas entre nossos pares ou até mesmo na gestão educacional. Ninguém gosta de embate: mas essa luta é necessária enquanto a desigualdade existir! As crianças também reproduzem essas (micro)agressões e não podemos fechar nossos olhos, continuando a nossa prática pedagógica e fazendo de conta que está tudo bem! Como Eliane Cavalleiro aponta, se nossas ações estão pautadas no respeito mútuo e reconhecimento das diferenças, precisamos falar sobre essas discriminações e pensar em ações para combatê-las! E se alguém apontar racismo em nossas ações, precisamos ter a humildade de parar, ouvir, refletir e estudar: não é o momento para justificativas ou para nos provar enquanto pessoa não-racista.

Para complementar a reflexão: live Desafios para uma educação antirracista, organizada pelo Instituto Unibanco

Fala, Prô! assume o seu compromisso com uma pedagogia antirracista e esse assunto não se encerra aqui: continuaremos a compartilhar práticas e dicas, refletindo acerca das questões étnico-raciais. De que outras formas podemos também contribuir? Escreva aqui nos comentários! Aqui também é o espaço para compartilhar suas práticas, deixar suas reflexões, desabafos... Vamos trocar figurinhas! 😉

    
Fala, Prô! indica: alguns livros para complementar os estudos

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